Literatura do Povo

Literatura regionalista e cultura popular brasileira hoje: a voz, a letra, o Encontro

Por Augusto Niemar

Do Encontro fez-se a raizama. Das raizamas há-de nascer um levante. Partamos, pois, das raizarias da Terra para pensar o regionalismo nas terras altiplanas. Nos movimentemos pelos enfronteiramentos (empoderamento pela palavra e pela consciência da territorialidade) para pensar a arte. Chantemos no entre e nas entranhas (betwixt and between, como coloca Victor Turner) para pensar as expressões de movimentos sociais, variações de momentos literários e transformações culturais fronteiriças. 

No Brasil, os retratos desses processos se deram pelo corpo e pela voz, pelas regiões e movências, pela condição da diferença e pelos sistemas de violência coloniais (e atuais) que regeram monofônica e polifonicamente as nossas raízes e os nossos rizomas. O Encontro de Culturas Literário coloca, novamente em voga, essa discussão da expressão “literatura regionalista” – seus meandros, sua história, sua rexistência e sua atualidade nesse novo milênio pandêmico.

Dizer regionalismo nos obriga ir à etimologia da palavra. Raízes: a palavra régio deriva do latim regius.regia. regium; regii. Há relação semântica com o Rex, do grego, e do sânscrito Reg. Todos com o mesmo sentido de “próprio do rei; pertencente ao Rei”. Essa derivação aponta para uma autoridade/autorização na circunscrição das regiões: regere fines. Ou seja, é sempre um espaço, não natural, definido por um outro-regente. Em país colonizado, no qual o Rei passou a ser chamado de Imperador, a região, enquanto palavra e ideia (raízes e rizomas) ligam-se ao domínio, ao monopólio, às capitanias, à política de regionalização para reger-governar. Nos Rizomas: o espaço físico nunca passa para segundo plano, embora possamos trazer questões econômicas e linguísticas, estamentais e de classe, sociais e identitárias. Podemos falar de movimentos regionalistas, diásporas regionalistas e de literatura regionalista. 

Para pensar sentir o regionalismo é preciso seguir as formações e feixes das raizamas. Se a semântica revela uma modus operandi de fazer do espaço uma região, no Encontro percebemos o desejo de um regionalismo sem rei – que seja enfronteiramentos pela palavra, pela ação, pela publicação. Ao pensar essa questão a partir da Chapada – evoca-se o habitar uma terra já habitada, povoar uma terra já povoada, regionar uma terra com moradores. Dos entre-lugares de quem imprimia os documentos e movimentos entre capitanias vemos a rexistência entre passos e campos, e o domínio entre paços e espaços (régios). Pensar tudo isso a partir das raizamas é diferenciar as culturas tradicionais e modernas a partir do trabalho e das funções rituais – semelhantes e/ou recuperadas na arte, na festa, nos eventos, nos Encontros. Além disso, as raizamas, com dramas e metáforas, evocam tudo que é liminar. Esse campo limítrofe entre escrita e oralidade, ou simplesmente entre literatura e cultura popular, surge como terreno fértil no denominado regionalismo brasileiro. 

O discurso regionalista – de quem não é amigo do Rei – volta-se para a constituição identitária de uma região/localidade. Na palavra, há sempre as relações espaciais que definem-se em performativos identitários e geográficos. A fronteira não existe, mas elas são criadas para que alguém reja e para que alguém seja regido ou até colocado pra fora – caso não acorde e concorde com os regimentos. A escolha dos critérios para definir uma região é sempre convencional, histórica, circunstancial e violentadora. São muitas as relações adotadas para definir uma região e esses processos, pelas raizamas, carregam marcas no corpo da linguagem e linguagens no corpo da multidão. 

Para a aparição de retratos dos processos de aculturação e de enfronteiramentos, e de suas projeções até nossa atualidade, entendendo os parâmetros sempre em acordo com aquilo que pode ser denominado de cultura oficial e não-oficial, as formas de escrever e publicar, de dizer e de falar que habitam esses regionalismos são apreendidas principalmente no esquadro da cultura oficial. 

Pelo literário, sempre vimos o escritor buscar o lugar da voz em escrita. Escrita que imita/inventa essa voz de quem não escreve/escrevia e de quem buscava/busca o lugar dessa vocalidade em livro. Bernardo Guimarães, é considerado por muitos o primeiro a mover imagens e visagens. Com o Ermitão do Muquém ele inaugura essa discussão que atravessa muitas vozes. Nessa mesma direção, José de Alencar tenta traduzir, de longe, os brasis liminares. Euclides da Cunha faz o deslocamento do litoral para um espaço de dentro e começa a repensar esse olhar longínquo e de longe. Nesse sentido, Hugo de Carvalho Ramos foi o primeiro a realmente buscar o lugar da voz e colocá-la em confronto com o escrito. Depois das tropas e boiadas em livro, vieram os revolucionários José J. Veiga e Bernardo Élis compondo e decompondo biografias regionais. São muitos os nomes nessa travessia, mas Cora Coralina e Guimarães Rosa enfeixam os movimentos de um regionalismo vivenciado sempre muito diferente do regionalismo registrado.

Fazendo literatura de campo – o escritor, por ser letrado, desloca-se e colhe esses deslocamentos (por entre/entranhas) que dialogam com formas de entendimento cultural veiculadas em nossas tradições mais orais, mais corporais – e longe do mar. 

O Encontro de Culturas Literário fomenta essa discussão e recepção compreendendo uma multiplicidade que varia a partir da realização poética, da métrica, do portador individual da tradição e da recepção em movimento de trocas e comércio popular. O Encontro provoca, assim, uma recepção interpretadora e caminha pela história literária na perspectiva da representação social. Consciente de que ninguém disse, nem dirá a última palavra, o leitor encontrador co-participa das variantes de cada gênero, estilo e época e hoje nos perguntamos se há um regionalismo ou vários regionalismos?

Com isto, as expressões de Adiel Luna e Michel Yakini-Iman foram vistas por uma ótica positiva – naquilo que iluminam das visões do nosso tempo e de nossa identidade. Ambos apontam para um longo percurso de violência, silenciamento, memoricídio e de rexistência, afirmação, geopoesia. Ao discutir estas relações predominantes e liminares, no século XXI, mesmo que habitus seculares reforcem valores quirográficos, nada impede que a percepção dos gêneros e das modalidades discursivas se interpenetrem e renovem valores arraigados aos sistemas estabelecidos. 

Assim sendo, o regionalismo, com suas marcas de literatura de campo – com seus autores sempre em movimento – evocam a expressão de liberdade. O escritor ao longo do século XX, engajado na percepção desse outro silenciado e/ou do escritor buscando sua voz, é contraponto para o escritor dos XVI-XIX. Ao mesmo tempo, o século XXI, com o cyberespaço e a ciberflânerie, altera essa tradição. 

A raizama incrustada no regionalismo propõe a priorização de uma auto-autoria, alter-autoria. Ressaltando as medicinas de raizeiras e benzedores, religiões alternativas, as preocupações com a ecologia antes da palavra, de estilos de vida profundos, diferentes daqueles impostos pela ordem capitalista e, principalmente, a ideia de tolerância, evocam o termo “regionalismo” em uma dimensão plural e atual. A literatura regionalista, hoje, é feita por aqueles que afirmam seus enfronteiramentos: ela está nas ruas e nos guetos, no Slam e na luta das Minas, no Coco e no Macaratu, nas Batalhas e nos Coletivos, nas Folias e nos Lambes, nas editoras de livros artesanais e nas páginas digitais, nos perfis literários e nunca solitários – nunca mais.

É justamente o que pulsa no Encontro de Culturas Literário: que os próprios fazedores e criadores falassem de suas obras, do ato de passar da letra à voz, do corpo ao livro. Regionalismo, hoje, implica pensar os falares, os pensares e os sentires de grupos, de seres entre-caminhos, de entranhas muito profundas – que agora se traduzem no literário, na autoria, na Encontraria.