Contação de histórias

PARA DIZER BOCALMENTE: CONTAÇÃO PARA ALEMBRAR

Por Augusto Niemar

O que faz o humano, humano: contar, narrar, poetizar.

Dizia o poetinha Vinícius de Morais que “a vida é a arte do encontro”. Disse-que-disse o poeta cerradeiro (de Niemar) que “a arte é uma vida de encontrar”. É justamente dessa arte do encontrar, do amor ao ato de encontrear, que o Encontro de Culturas Literário invocou contadoras e contadores de histórias para virem para cá – e é pra lá que eu voo.

Condição infinitamente aberta em que o ser aparece em constante formação e transformação, o verbo que se faz-corpo cogita e agita profundamente os temas da tradição e forja novas condições para a existência da arte. As vocalidades dos que de tão longe vem vindo (como define Carlos Rodrigues Brandão), na presença do discurso oral e corporificado, a dimensão do ato de contar passa a bamburrar histórias.

Os contadores, narradores, versadores (geopoetas) geram manifestos libertários (destronantes) por determinados temas e figuras históricas, por determinadas expressões e modos de palavrar. Tudo se re-significa ao serem alembrados e contados, narrados e encenados, lidos e performados, caminhados e cantados em canção. Nessa genealogia, tão longa e ancestral, desses reveladores da palavra, a contação é a arte de fazer o ouvinte acreditar – no que vai ouvir, deglutir, sentir. 

Enveredando e redemunhando, uma carga vocal e oral, o cenário da performance é todo amparado e movido pela raizama do bem-dizer. Ao mesmo tempo, na roda, à roda, uma escuta sensível instaura-se e tudo se abre bocalmente: era uma vez..., há muito tempo atrás (pleonasmo delicioso), de repente não mais que de repente..., quand´é´fé..., Ó prestenção..., no tempo da chuva..., no tempo da seca..., e o nada que é tudo: era uma vez uma vez outra vez...

Depois de tanto isolamento, vamos botar nossos blocos na rua: brincar, cantar e contar histórias. E é justamente dessa palavra da terra-que-cora e que conta que o cerrado, que a Vila de São Jorge (Goiás), recebe todas as contadoras/narradoras que vivem e entoam novos mundos. Cada uma à sua maneira, ao seu estilo, sempre busca palavrar os sentimentos humanos, que vão imitando (recriando) um mundo em movimento. Nessa vilazinha – tão maconda, tão antares, os sentidos e sentires da palavra se fazem vivos a cada conto, a cada narrativa e que, ecoam para o futuro que logo ali está.

No Encontro de Culturas Literário tivemos/teremos a pedagogia griô com a escutadora de histórias Luciana Meireles e guardador de presenças Lucas Viana Silva “a serviço” da Dona Maria das Alembranças – “caçadora de alembranças e coveira de esquecimento – porque ela vem para alembrar das raizamas, das histórias escondidas no lado de dentro da terra e dentro do corpo da gente”.

Também encontraremos a contadora de histórias e escritora Juliana Correia aliando memória e educação a partir de contos da tradição oral africana e afrodiaspórica. Essa Mulher negra, ex-passista do carnaval carioca, nos envolve entre BaObazinhos, Alegrias e Aletrias - apresentando um estilo pulsante e ancestral de contar e recontar, contar e decontar. Nessa arte para Encontro, Maria Elisabete Pacheco, narradora oral e educadora, que vem espraiando histórias na Terra do Cariri e do Crato, pelo Mundo e pelo cerrado (agora!) nos ensina que os mestres e brincantes tradicionais da cultura oral têm muito pra ensinar com suas narrativas populares. Com ela vamos aprender a ser e estar, aprender-ensinar modos de fazer e palavrar, ensinar-ouvir escutatórias (escuta e história).

A-bem-dizer, a aura de fantasia é anunciada pelas faces e máscaras de cada matriarca, de cada avó, de cada rendeira, por cada sábio raizeiro, por cada guardador de tradições. Em cada prosódia, em cada movimentação/encenação/dramaturgia – tudo ao mesmo tempo naquele agora – uma liberdade e profundidade se anunciam. 

A bemser, a contação é mais livre que o teatro pois abole não só a quarta parede, mas leva o seu ouvinte – no momento mesmo da presença em voz que emigra – para um outro universo, para uma obra, para uma sensação primeva e antiga. Ao mesmo tempo, dom e doação, é uma ação aberta para o futuro que logo ali está, para a plateia que dirige os traços e nuances no palco das acontecências. 

Ah-bem-dizendo, questões fundadoras (e fundamentais) para o literário moderno foram trazidas pelos contadores e pelas contadeiras (como dizem no cerrado): a capacidade de contar histórias, a importância do ato de ouvir-o-outro, no entre e nas entranhas demove-se a atualidade da língua viva. Língua certa, língua inovadora do povo que vai se lançando nos bemdizeres das anciãs e dos avoengos, das vodinhas e dos avohais.

Evocando contadores e contadoras para o Encontro de Culturas Literário, uma poética do corpo e da relação entre o visível e o invisível, o sócio-histórico e o simbólico reforça-se e renova-se – pois o corpo-pele-sensação se transforma quando estamos no cerrado: as árvores tortas dessa savana ancestral, o céu azul de sabão em pó, os cristais e cachoeiras, o bater do pilão, lendas e parlendas, entidades e livosias, tudo conta. Tudo enconta nesse Encontro e da experiência da voz na Encontraria, revelam-se metáforas, desvendam-se o oculto do cosmos: afinal, sempre se deve fundir o ato de contar histórias com o discurso que a envolve. Há uma relação entre as várias partes que formam esse todo. Existe uma ligação entre as partes que transformam os discursos e as histórias, a importância do ato de ouvir e a importância do ato de contar. 

Na perspectiva da emancipação humana a arte melhora os indivíduos. Se pensarmos a arte e seu papel na formação de uma ideologia rexistente temos uma interessante ferramenta para pensar a realidade das relações humanas, na construção do conhecimento e da sabedoria.

A roda acontece sob árvores frondosas e ao redor da fogueira, em noite de lua cheia e distraidamente quando os olhos se encontram. Nos arrabaldes e arredores, subúrbios e agrestes, escolas e parques, o ato de contar histórias constituiu e constitui uma importante topografia das cidades e propiciam uma convivência harmoniosa cada vez menos propiciada pelo cotidiano e desvario humano.

Na infância, essa experiência é contínua e cotidiana – o ouvido sabe ouvir ao máximo. Um ouvido que labirinta-se nas cantigas de ninar, nas cantigas de roda, nas canções populares e poemas que vão virando canções. Alumbramento de uma escuta sensível que se dá na experiência imediata, no brinquedo e no folguedo, na imagem de sabedoria de quem conta histórias para nós, pra você!

E o futuro o tempo-dirá. No presente, o Encontro de Culturas Literário nos dá de presente, essa roda de prosa, essa prosa de revelar, revelações do mundo a enigmar. No ato de contar e narrar instaura-se que convida sempre um outro. Esse outro que antes contou outra história que ouviu de outra que contou para outres numa ciranda bela e eterna que só as histórias podem, realmente, nos contar ar ar ar...