A arte de Moacir Faria

Moacir Faria nos deixou no dia 10 de julho de 2025. Deixou também, para nós, um legado artístico que se tornou identidade, sinônimo do nosso encontro. Como homenagem, deixamos abaixo um texto produzido, em 2015, pela nossa então estagiária de jornalismo, Ana Ferrareze, hoje produtora do Encontro de Culturas Tradicionais da Chapada dos Veadeiros.

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Quando chegamos à casa de Moacir Farias, na manhã desta quarta-feira, ele espreitava a rua pela janela, como se já estivesse esperando alguém chegar. Nos apresentamos e perguntamos se podíamos bater um papo. Ele levantou como quem não quer nada, sumiu pelos fundos da casa e abriu a porta. Era o aviso de que éramos bem-vindos. Aos 48 anos, Moacir é conhecido mundo afora. Artista valioso, autodidata, confere cores vivas ao cerrado. Suas pinturas retratam o seu imaginário, colorido, intenso, povoado por animais, pessoas, santos e demônios. Ele retrata o que vê e o que viu pelas ruas de terra de São Jorge “desde que era assim, ó”, bem pequenininho, como mostra a altura baixa no ar com as mãos, enrugadas e fortes.

Nascido e criado na vila, é filho de Seu Domingos Farias, antigo garimpeiro, e Dona Maria, dona de casa, ambos já falecidos. A emoção transborda quando fala dos pais. Coloca as mãos no peito para mostrar como a saudade é grande e avisar que pode até chorar se o assunto continuar. Desde pequeno, Moacir vive seu próprio universo. Na infância, se escondia das pessoas e quando saía às ruas era com o rosto e o corpo cobertos por panos. Se alguém o visitava, corria para o mato. O burburinho da vila soava chamando-o de louco, esquizofrênico, o que só aumentou quando começou a pintar seus personagens pelos muros e postes, por todo lado.

No começo, pintava nas pedras, troncos e em papelão, onde encontrava um espaço, usando carvão e a tinta que vinha dos frutos do cerrado. Há dois anos, por conta de problemas na coluna, deixou de pintar com a frequência de antes. Mas quando dá na telha pincela algumas imagens e sai à noite ou durante o dia procurando qual será sua próxima obra de arte. “Dói muito, por isso tomo remédios. Gosto deles, tiram a dor, mas às vezes também a inspiração”, me conta.

A conversa com Moacir se desenvolve aos poucos, com sentimento e sensibilidade. Surdo do ouvido esquerdo, tem dificuldades para entender e para falar. Mas quando entende e quer se expressar não há o que o impeça. Pacientemente, concorda e discorda, repete e pede para repetir várias vezes, até a mensagem sair certa. O que mais diz é: “eu não sei de nada, não faço mais nada”. Eu disse a ele que me engana falando isso. E ele prova que é pura simplicidade ao longo da conversa, enquanto sai buscando as imagens espalhadas pela casa para nos mostrar. Volta e meia responde que pintou uma ou outra há uns dias. “Mas são só essas”. Já são muitas, Moacir.

A arte em diferentes dimensões

A casa com cômodos espaçosos é um ateliê. Os quadros se espalham pendurados e encostados nas paredes. Na parte externa, as imagens também colorem toda a entrada. Um painel reciclado de tempos em tempos por Moacir. Em cada foto que nos mostra, elas estão diferentes. E há espaços em branco, pintados por ele, que um dia vão se transformar em outras figuras. “Quando eu parar de tomar os remédios e melhorar”. Em caixas expostas e escondidas, que ele traz vez ou outra para quem tem a sorte de ganhar sua confiança, estão fotos reveladas de obras, que ele mesmo tira, e também teses científicas sobre seu trabalho, que ele apenas admira, já que nunca aprendeu a ler nem escrever.

Alguns personagens se repetem nas pinturas. Mulheres com as pernas abertas, bundas, seios, o sexo explícito. Pergunto de onde elas vêm, se ele já se apaixonou. Rindo, Moacir responde que não. E também não sabe quem são. Em uma foto que me mostra da mãe, Dona Maria, ao fundo aparecem fotos de revistas masculinas com modelos nuas em posições parecidas. Uma inspiração? “Não sei, são só fotografias”, ele rebate.

E os diabinhos, Moacir? Pergunto. Mais uma vez, o riso é fácil. Os diabinhos aparecem por toda a vila e pelos cantos da casa. São figuras marcantes no visual de São Jorge. Lembro a ele que na rua passei por um grafite de um artista em que eles também apareciam, pintados por cima. “Eles ficaram bravos por isso?”, pergunta. Eu digo que não sei, mas que acho que não. Ele ri de novo. Para mim, os diabinhos de Seu Moacir são como uma provocação. Para deixar as pessoas pensativas, como ele mesmo me conta. Na cidade, teorizam que ele havia parado de pintá-los, mas recomeçou quando sua casa foi alvo de pichações de pessoas contra sua arte.

Passando as imagens de um álbum que me mostrava, ele para em uma figura, que marca bastante presença nas obras. De cabelos compridos, lembra Jesus Cristo, com uma auréola sobre a cabeça. É Jesus? Não. É uma mulher? Não. Quem é então? “Aparece desde que sou pequeno. Vem todos os dias. Durante o dia, à noite. E sabe de tudo. Coloca a mão gelada no meu braço e me fala quem é bom e quem não é”, responde, aos poucos. “Olha, até me arrepio”, mostra.

Enquanto conversamos, duas pessoas entram na casa. Ele olha desconfiado. Afinal, não abriu a porta para que entrassem. “O senhor gosta de visitas, Moacir?”. “Só de gente que presta. Muitas só vêm pra falar mal da minha vida. Mas ele me conta tudo assim que elas chegam”, fala, apontando a figura do álbum mais uma vez.

Moacir é um homem de mente brilhante e muita pureza. É daqueles que dizem não saber de nada, mas sabem de muito. Se tiver sorte, ele vai gostar de você, abrir a porta e prosear ao seu modo até cansar. E vai revelar uma parte de seu universo interior, onde os personagens “não são de verdade, vêm da cabeça”. E o que é a verdade, Moacir? Quem é que sabe? Verdade é o que sai do coração. E na vida e na arte desse artista de São Jorge ela transborda em variadas cores, formas, reflexões e dimensões.

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2025 Casa de Cultura Cavaleiro de Jorge.